REGIONAL | Leia os poemas finalistas da 35ª Noite da Poesia

AINDA SOBRE O LITORAL CENTRAL Volmir Carodoso

 

AINDA SOBRE O LITORAL CENTRAL

Para Geraldo Roca

 

Eis que ele chegou com seu canto,

polca rock, Dylan guarânio.

Guitarra com fúria de harpa:

feito uma cerca arrebentada.

 

Diziam do bardo: este, herdou terras!

E ele teimando em fazendas no ar.

Sulcando o vento, foice elétrica, rio sonoro,

arredio como o Apa, vetusto como o Paraguai.

Nunca se curvou: mais louco do que a média,

a ponto de correr atrás do que o dinheiro não compra.

Alumbrado com tradições platinas, litorais centrais, outra onda.

O rio.

Andou triste em Copacabana, a chuva sobre o mar.

Back in Big Field: rebelde agropunk e tome polca outra vez!

O Mar de Xaraés nos bueiros da cidade.

O guaicuru em seu cavalo pedrês

pisando capôs de picapes na Afonso Pena.

Carpinchos aluados e blasés furando o sinal vermelho.

O machete guarani, o silvo do desassossego, a vingança Terena.

 

Ah, querido aedo, porque não vais mais cantar?

A lira descendo o rio, afogada oferenda,

De Asunción a Corumbá,

O pai do seu pai na chalana, um fantasma, uma lenda a te esperar.

O pôr do sol lindo de morrer e as estrelas do cruzeiro ainda fazem um sinal.

O estalo tépido na noite de natal,

Um tiro, longo como um gongo,

Um bolero triste, uma milonga.

Terremoto que estronda e engole noites mágicas em Machu Picchu.

O rio represado, lago em círculo: um disco.

Rastro acústico de utopias platinas.

Estradas d’água.

Nandi Vera: vacío que brilla.

Hasta luego, mi camarada.

Eres semilla.

 

JUSTA MEDIDA Susylene Dias De Araújo

 

Justa Medida 

 

A poesia, 

tão cansada de pedir licença, 

agora deu pra exigir justiça do tipo poética. 

E com as próprias mãos agarra o verbo

–  cansado, roto, desbotado – e cega.  

Nas ruas,   

levanta bandeira, agita o cartaz, 

se arma na palavra e aparece 

– voraz – na camiseta. 

Se tarda,

falha.     

Amarildo, Flausino, Marielle, Eloá ou Thémis? 

Qual é teu nome? 

musa da balança,  

deusa que não me enxerga.

 

UM MANEQUIM Reginaldo Albuquerque

 

                      Um manequim

 

Fresca aurora recua a face em despedida…

Ao pé do pau-brasil, num recanto da praça,

esparso, um manequim jaz sem dor, riso ou graça,

confeitado de musgo e relva umedecida.

 

No ar urbano que o envolve, ainda uiva a carcaça

arquejante da infâmia, asquerosa, incontida!…

É um quadro a profanar os sonhos nesta vida,

no antigo e inane ciclo: ecoa… instiga… e passa…

 

Faísca o sol… intrusa ave cisca-lhe o brim

do peito… alheia, aviva um medalhão carmim…

O susto a asa distende e espalma, o céu cortando!…

 

No delírio, ao luar, um telão repetia:

Luz de som… dó-ré-mis de cores… e a euforia

da nave e os seus robôs atirando, atirando…

 

MEMÓRIAS DE IPE Adrianna Alberti

 

Título: Memórias de Ipê

 

Nascida fria na garoa lilás constante,

na terra tingida de pôr-do-sol

construiu suas asas em papel e reminiscências,

deixando raízes emaranhar seus tornozelos

até chamar de casa o inverno inclemente

 

Há memórias de ipê em seus verbos e em suas curvas

frutos dos anos fragmentados entre o aconchego, o suor e a lágrima

Guardadas nas tardes que se rendam de árvores em sombras

do lusco-fusco em ruas e estradas cheias de alvoroço

 

Há digitais marcadas à silêncio afável que tatuam a pele

para, indeléveis, serem sempre aspirações para linhas em branco

 

Ela, nascida suçuarana, toda úmida, introspectiva e tímida

foi, seguindo a sombra de uma onça arredia,

que se encontrou aroeira em flor, arisca, fascinada

Vermelha!

 

E fica guardado entre céus azuis e sóis cinzas

depois dos ventos de poeira e fumaça e das chuvas

 

Aquela crise escondida atrás do portão que se enfeitava com flamboyant

distraída pelos cachos da cássia-imperial 

e seu perfume doce que, à noite, encobria o cheiro do cigarro

 

A cativa de um primeiro encantamento 

disfarçado de tucano voando em meio aos carros 

pousando ainda robusto numa figueira distante

 

O beijo quente de um chuvisco tardio de fim de dia

 

UM RUGIDO DE LEOA LUCIANA FERREIRA DA SILVA

 

UM RUGIDO DE LEOA

 

Empodere-se mulher guerreira independente

Tá no corre não se rende mulher rei na linha de frente

Firme igual baobá no solo sagrado

Defendendo o legado está de Black e punho cerrado

 

Sou rainha sou guerreira nossa história é verdadeira

Minha rima representa toda realeza preta

Preta bonita livre e de pele escura

Voz pesada poderosa nossa força é a cultura.

 

Rainhas brilham com poder de governar

Eu quero e nota sobre nota cada uma escolhe seu lugar

Dona do destino lutando por direitos

Fiz da resistência um hino enfrentando preconceitos.

 

Revolucionária e com coragem no olhar

Seja forte nem as barras das grades vão te parar

Lutar contra a corrente buscando nosso espaço

Sempre determinada com o coração de aço

 

Herança genética vinda de ancestrais

Fortes inteligentes mulheres fenomenais

No livro de aço quero as heroínas

Mariele, Sueli, Djamila, seleção feminina

 

Aqui a cor é uma sentença Gueto periferia

Nossa consciência negra supera a covardia.

O sistema é racista e ataca meus irmãos

Te quer morto esquecido sem nenhuma explicação.

 

Sou filha da diáspora um pedaço da África

Que luta todo dia para se manter intacta.

Minha fé é minha arma o meu crespo minha coroa

no griot minha mensagem um rugido de leoa.

 

DIVISÃO DO TRABALHO Tarita Almirao

Divisão do Trabalho

Quando estudei
Divisão do trabalho
O significado da especialização
Eu não pensei que dividiam
A galinha
Coxa, rabo, peito
Pra que a gente não visse
nesses pedaços
Uma vida.
Quando li sobre alienação
Eu não entendi

Como não percebiam
Que também nos dividiam
Em 

Coxa, rabo, peito
Pra que não pudessem reconhecer
Uma mulher nessas 

Fatias.

 

Vindas e voltas Cristina Rubert

 

Vindas e voltas 

A linha me escrevia

a lápis ou à caneta

errava, rasurava e se repetia 

 a natureza, toda, de mim, se ria.

 

No Eden, a maçã mordia meu avesso,

em contrassenso, sentia o gosto dela

dentro de minha vida sem preço.  

 

O escárnio anunciara o maldizer

um milhão de anos

no eu, no outro, no eles e no você.

No tempo de vida vazia, me desencontrava 

no vão, cismava viver

em vanglórias, tortas e retas

côncavas e convexas

não vivia, expirava,

em cada amanhecer.

 

Escrever certo na linha torta

escrever torto na linha certa

era clichê do mestre e do discípulo

no plano e na rota, na tentativa do aprender.

 

E, na narrativa, 

ser prosa, ser poesia

ser real, ser fantasia

no palácio ou no barraco

sair do rascunho, passar a limpo

o não e o sim do nascer

crescer, se reproduzir e morrer. 

 

Nas vindas e nas voltas

em linha reta e torta, na curva, na estrada, na passagem

ser o grão dentro da vagem.

 

Se deixar ir nas asas de um unicórnio

fruir, soltar, se divertir, no plexo, não pré ocupar

no ganhar, no perder, começar nova via

desentalar, vomitar tudo o que asfixia,

 deixar, no duro da calçada, a flor nascer, ainda que tardia.

 

No sim e no não, ser viagem sem contramão

servir ao bem em ação

escrever a vida em versos livres

e, na cantiga de amigo, ser de amor

sem culpa, sem medo, sem dor. 

 

INFLORESCÊNCIA Gleison Garcia da Silva

 

Há uma celeuma de silêncio no subúrbio

ainda que se possa ouvir

com os pés do ouvido, os latidos 

dos cães de dona Meire

fio condutor de entrelaços;

o mórbido motor da geladeira 

o ranger surrado 

da cama suada

os sopros do ventilador de chão;

telhados riscados de transas felinas

alguns arranhões

na pálida luz que golfa da íris da Lua —

gota azul, reflexo, vela, penumbra. 

 

Há um outro silêncio, maior ainda,  

vulto enorme que martela

na dureza do trabalho do servente

que descansa com horas contadas 

para construir o altíssimo edifício 

de hora alguma. 

 

da moça escarlate 

que pelos seios enigmáticos 

da noite (a qual é dama) 

atende seus clientes eretos,

 

do velho que vende desinfetantes multicores em pets

sob o asfalto cinzento 

da sua vagarosa carriola

que carrega a coluna entortada

de tantas outras histórias. 

 

Há um silêncio repentino 

na rouquidão escura das ruas 

derramadas em mais silêncios, 

em voltas infindas, cheias de mãos e olhos, 

ambições, euforias, lágrimas 

nas fendas, neste céu fantasmagórico 

pelo lume anêmico dos postes aos labirintos

que alimentam os ossos das mães melancolias. 

 

Há um silêncio dentro de si mesmo

soniais madrugadas 

que guardam as chaves primordiais

dessas nossas transmemórias.

 

Luciano Risalde

 

 

Lá 

a Lua é presa por uma teia de aranha,

Quando a Lua cansa, se deita e o Sol levanta.

Lá os passarinhos são a banda que canta,

E o grilo também é o cantor.

 

o Rio é a piscina de todo mundo,

É plantação de peixe, é aquário sem vidro.

Lá as casas não sabem o que é muro,

Existe o com licença, obrigado e por favor.

 

os vagalumes brincam de ser Estrela,

Acende e apaga, pisca- pisca a noite inteira.

Lá o Sol é a grande fogueira,

Que queima e aquece a minha alma.

 

as Estrelas não são feitas de avião.

Lá as Nuvens são feitas de algodão.

Lá as Flores também tem coração.

Lá é onde Deus encontrou a calma.

 

Abster-se da verdade Bruno Rodrigues de Oliveira

 

Abster-se da verdade

 

É covarde a escolha de abster-se

indo se perder num breve labirinto

− encucado dos presságios e desterros −

esnobando o desmazelo de importa-se,

 

tal ruínas dos segredados transatos

− excluindo do arqueólogo xereta −

pelo mato em meio a terra, os tesouros

redigidos nos rodapés dos contratos?

 

Ou encare o xeque-mate do acaso

feito pústulas pingando (mascaradas)

e corrompa as tais verdades abjetas,

acondicionando as gotas no seu vaso;

 

ou pulule as mentiras desenhadas

como a rupestre arte esquecida,

revelando as imagens do remoto

sob as sombras das ideias perpassadas.

 

Só inflija a dor que um dia suportou.

A verdade pode mesmo alforriar,

entretanto, os males (ácidos sulfúricos)

são intrínsecos no seu plano de voo.

 

Transfigure as verdades floreando-as

em aveludadas rosas escarlates,

e, por fim, entenda a relatividade

das mui vozes em sua boa ressoando.

 

Oliveira do Cerrado